sábado, 24 de março de 2012

Olhos de Falcão - Introdução/ Prólogo


Tudo que se eleva acima da sua condição, tanto no bem quanto no mal, expõem-se as represálias dos deuses. Tende, com efeito, a subverter a ordem do mundo, a pôr em perigo o equilíbrio universal e, por isso, tem de ser castigado, se pretende que o universo se mantenha como é.”
Nêmesis


= Introdução =
Na mitologia grega, a deusa Nêmesis é encarregada pela justiça divina. Mas, também é retratada como a vingança.
 Os gregos acreditam que a deusa carrega a justiça e a vingança em ambas às mãos, e que facilmente as confunde. Nemesis, a justa, executa suas vítimas de forma lenta e dolorida, para que o acusado sinta bem a justiça atravessando sua pele.
 A beleza da deusa é comparada a de Afrodite, com as feições de um anjo e as asas aladas. Embora o coração seja frio, e uma pedra imutável.

 

Sou um exilado, ou melhor, eu me fiz um exilado.
Aproveito um instante para recordar toda a minha vida, e tento vê-la pelo que foi.
Em meio à loucura que encontrei e causei, ao choque das perdas prematuras, à brutalidade das colisões da humanidade que presenciei, houve momentos... Sem dúvidas houve. Amor. Paixão. Promessa. A esperança de algo melhor. Mas me defronto com uma visão, se eu tivesse escolhido outro caminho, estaria me esperando? Viveria?
Tudo desapareceria, e seria esquecido. Eu seria.  Você seria. Nós seríamos.
Minha vida. O que foi minha vida? O que fiz dela?
Essa foi minha vida.
Uma vida desenrolada como um fio, de resistência incerta, comprimento desconhecido; que ligou mais vidas em seu curso. Eu sempre pensei que havia duas opções: ou você teria uma vida para segurar, ou uma para ver escorrendo pela palma de suas mãos.
Caro humanos insatisfeitos que pensam serem deuses. A vida é nos dada, mas desejamos ter duas, ou três, ou mais, esquecendo-nos com a maior facilidade da que tivemos e gastamos.
Queria ter tido uma. Só uma ao seu lado. Relembro dos momentos especiais esporádicos, perfeitos e o mais importante... Foram nossos.
Esse é o capítulo final, e fico feliz apesar de tudo, porque foi a minha vida. E ela foi totalmente e inteiramente sua. 
Acho que chegou o momento de contar tudo que aconteceu. Estou sentado sobre a poça quente do meu próprio sangue, sinto a quentura escorrer por entre as feridas abertas, queria saber por quanto continuarei a respirar. Não quero mais.
Dois corpos a minha frente, um significa que a justiça foi feita, o outro significa que nunca fora justiça, e sim vingança.
Volto ao começo. Venha comigo, se quiser, pois nada mais posso pedir, cometi muitos erros e o maior deles foi calar meu coração.



Prefácio

Em suas veias corre o ichor – o sangue dos deuses.

O dia de verão mais quente do ano na Grécia estava chegando ao fim. O motorista seguiu para o leste e quinze minutos depois mal era possível fitar as exuberantes praias gregas, as águas mansas no intocável tom de azul-turquesa quebrando em grandes arcos. A areia tão branca e fina que se dissolvia em contato com a pele.
No início da tarde os campos cederam lugar a pequenas aldeias e finalmente alcançaram os arredores de Atenas.
Havia um passageiro nos bancos traseiros, sentado em um porte régio no estofado de couro. O homem ajeitava os óculos de sol de uma marca italiana famosa, com a intenção de proteger os olhos claríssimos dos raios solares. Sua chegada era aguardada como a volta do filho pródigo.
Olhando as irregularidades das linhas dos bastos vales verdes que adornavam sua pátria, ele se recordou de como eram os olhos esmeralda de sua mãe — tão verdes como folhas de mandrágora. A forma singular como aquelas duas órbitas brilhavam quando o pai dizia as três sílabas mágicas – as quais tinham um valor muito maior que belas poesias -, Eu te amo.
Nunca poderia se esquecer daquela manhã. Fosse qual fosse a forma como uma pluma branca pousasse ou descansasse, diziam que indicava a visita de um anjo. Ele viu uma. Rodeando a quina da porta quando ele a abriu, quase como se tivesse aguardando pacientemente para entrar, e a correnteza do corredor a carregou para seu quarto. Era comprida e fina, diferente de qualquer tipo de pluma que o menino tivesse visto. Ele pegou-a, e segurou-a com cuidado, depois mostrou a mãe. Ela disse que era de um anjo.
Mais tarde, anos depois, ele entenderia a hipocrisia. E veria que sua infância fora infestada de gente que dizia uma coisa e fazia outra.
Naquela época, quando ele era criança, nunca viu realmente essas coisas. As crianças, embora perspicazes, têm visão seletiva. Vêem tudo, não discute, mas escolhem interpretar o que vêem de uma forma que convenha às suas sensibilidades. E assim foi com a pluma: nada demais, mas, de alguma forma, um presságio, um agouro.
Aprendera a ser supersticioso com o pai, que apreciava sua sorte na vida e se preocupava em não hostilizar os deuses. O menino de cinco anos acreditava que seu anjo o viera visitar. Estava plenamente convencido, então os acontecimentos do dia pareceram todos, ainda mais disparados e incongruentes. Pois esse foi o dia em que tudo mudou.
A morte chegou naquele dia. Profissional, metódica, indiferente aos costumes; sem respeitar práticas religiosas ou qualquer tradição. Ela veio buscar seus pais.
De acordo com a tradição, o menino teria de assistir o fogo consumir o corpo do pai. A fumaça representando a alma dele passando desta terra mortal para um plano mais elevado, mais justo e equitativo. Nem ao menos isso foi possível. O corpo de seu pai sofreu tal estrago, que poderia escandalizar as pessoas. A mãe não tinha o sangue grego. Então foram sepultados num caixão largo, de pinho simples e empenado. Claro que pouparam a criança de verdade.
Mais tarde, as lembranças daquele dia se tornariam fragmentadas e fadadas ao esquecimento infantil. Ele viveu cultivando o pesar pelos pais, pranteando a ausência deles ao mesmo tempo em que odiava o pai, o odiava por ter roubado a chance de uma vida feliz.
Há uma teoria de que nada na natureza jamais se perde – que cada som já emitido, cada palavra já pronunciada, ainda existe em algum lugar no espaço e pode um dia ser recuperada.
Ele ouvia vozes do dia em que perdera os pais, mas eram abafadas e fragmentadas, enchiam-no de confusão...
Filho em suas veias corre o ichor – o sangue dos deuses seu pai disse em uma tarde enquanto explicava ao pequeno sobre mitologia grega.
— O papai vai receber um amigo. É hora de criança ir para cama... — sua mãe o carregava no colo, o pequenino apertando forte o pêlo macio do ursinho contra a face.
— Como você pode?! Eu confiei em você! — a voz carregada de ódio do pai ecoou e ressoou pelos cômodos da casa, mas começou a lhe parecer mais compreensível, condizendo com os acontecimentos. — Elizabeth, vai embora!
— Por favor, meu filhinho não... — reconheceu a voz meiga da mãe, distorcida pelo terror.
As vozes não paravam. Era um tormento. O passado tornou-se um caleidoscópio de imagens instáveis que passavam vertiginosamente por sua mente.
Despertava gritando todas as noites. À medida que o tempo passava, havia lampejos angustiantes de memória, vislumbres de imagens vagas e efêmeras, que afloravam e desapareciam tão depressa que não podia apreendê-las, mantê-las e examiná-las. Ocorriam em momentos inesperados, pegando-o desprevenido e na maior confusão.
Até o dia em que recordou do amigo de seu pai que viera visitá-los no dia fatídico. O homem estudava-o com os olhos frios e insidiosos. E foi como se uma comporta se abrisse. As imagens brilhantemente iluminadas afloraram de súbito em sua cabeça. Podia ver o rosto daquele homem claramente diante de seus pais pela frestinha da porta dupla da sala, mas alguma coisa sairá errado.
Alguma coisa...
A imagem seguinte foi do homem postado em frente à silhueta do pai, o cano do revólver mirando o crânio. E depois o horror começara. Sua mãe descobriu o filho escondido. Ela se ajoelhou pedindo por sua vida, as lágrimas brotando em suas pedras preciosas. As esmeraldas tão melancólicas, e ainda assim tão belas. As imagens que surgiam em sua mente eram agora aterradoras.
Então um estouro alto em sua mente, o fez comprimir as mãos contra os ouvidos, como se quisesse excluir os terríveis pensamentos que o invadiam.
Naquele dia finalmente descobriu a verdadeira história da morte de seus pais, de como foram traídos e assassinados por aquele homem. De como a memória de seu pai fora maculada, por uma mancha tão negra que nem os deuses teriam misericórdia. Ele os assassinou.
Não demorou muito para que estivessem no meio da cidade fervilhante. De repente tudo pareceu estranho e irreal como quando foi acolhido pelo tutor. Spyros Lambrou. A primeira vista ficou espantado com as hordas de pessoas que seguiam apressadas pelas ruas, criando uma algazarra de conversas atordoantes. E agora ele orgulhava-se de ser um patriota.
Eles passavam pela cidade barulhenta e agitada, com a sucessão de ruínas e monumentos que surgiam ao seu redor. O motorista apontou para frente e comentou, orgulhoso:
— Ali está o Parthenon, senhor, por cima da Acrópole.
Ele olhou fixamente para o prédio de mármore branco familiar e completou:
— Dedicado a Atena, a deusa da sabedoria.
O motorista deu um sorriso de aprovação.
— É grego, senhor?
— Sim, por parte do meu pai.
Havia modernos hotéis e prédios de escritórios por toda parte, em meio às ruínas eternas, uma exótica mistura de passado e presente. A limusine passou por um enorme parque no centro da cidade, com chafarizes cintilantes no meio. E seguiram até subir no alto dos morros. Passaram por um portão de ferro e uma casinha de pedra ao lado, subiram por um longo caminho de ciprestes imponentes e foram parar adiante de uma imensa e branca Villa mediterrânea, emoldurada por meia dúzia de estátuas magníficas. A bandeira grega azul e branca estava sempre hasteada na Villa.
O motorista abriu a porta do carro, e o passageiro surgiu. Era um homem belíssimo, com uma mente brilhantemente incisiva, um físico impressionante: peito estofado e ombros largos. Possuía o rosto de um falcão, um nariz comprido – tipicamente grego -, os olhos verdes exuberantes como os de um predador.
Um homem trajando vestimentas formais, meticulosamente passadas o aguardava na porta da frente.
Kalihmera — a palavra para bom dia aflorou espontânea dos lábios dele.
Kalimehra. Seu pai o aguarda.
O mordomo esperou que herdeiro de seu patrão entrasse. A mansão era familiar, decorada com ostentação — o lugar de um verdadeiro Lambrou. O chão era de um mármore italiano cremoso.
A sala de estar era enorme com um teto alto de vigas, sofás e poltronas aveludadas por toda a parte. Uma tela vasta , um Goya escuro e ameaçador cobria a parede ­ recordou-se com nostalgia dos pesadelos noturnos causados por aquela pintura abstrata. Também se recordou com carinho quando seu tutor retirou a tela favorita, pois assustava tanto o pequeno herdeiro.
O mordomo parou ao se aproximar do quarto de Spyros.
— O Sr. Lambrou o espera lá dentro.
— Obrigado, August.
As paredes do quarto eram de painéis de madeira brancos e dourados, uma cama enorme de dossel. Havia mesinhas e abajures antigos, e quadros impressionistas nas paredes. Persianas impediam a entrada do sol ofuscante. Através das janelas, ele pôde ver o mar turquesa lá embaixo, ouvir as marés quebrando nas rochas.
Um homem idoso sentava-se atrás de uma vasta escrivaninha. Levantou os olhos quando o herdeiro entrou.
— Edward, meu filho.
Edward não deixou transparecer qualquer reação. Embora estivesse velho. Spyros Lambrou transparecia o que fora um dia; um homem esguio e elegante, sempre impecavelmente vestido, sempre cortês, com uma classe tradicional. Sua árvore genealógica incluía Otto da Baviera, que outrora reinara como o rei da Grécia.
— Sei quem foram seus pais, Edward. E tenho conhecimento de ninguém nunca tomara o lugar deles. Mas, sou um velho tolo à beira da morte. Se eu tivesse tido um filho, queria que fosse o que você significou para mim.
Edward sentou-se na frente dele, num sofá de couro preto.
— Você foi tudo o que meu pai deveria ter sido. Se não tivesse... — ele parou, sem saber como continuar. — Não importa. Vão pagar...
Spyros experimentou um súbito calafrio de alarme. Era a última coisa no mundo que ele queria, vê-lo mergulhar em uma vingança sem sentido.
— Vejo que infelizmente os anos não modificaram seu coração, meu filho.
Edward foi até a janela e olhou o jardim impecável.
— Não enquanto ele viver.
Spyros forçou-se a parecer calmo.
— Cumpra um último desejo de seu tutor. É a única coisa que te peço.
Edward era como um falcão, astuto. Ele hesitou, avaliando sua resposta com o maior cuidado.
— Se estiver ao meu alcance.
Spyros adiantou-se a pôs a mão em seu ombro.
— Perdoe.
Edward não o ouvia. Mamãe, pensou. O rosto lindo de sua mãe, rindo. O amor de seus pais...
— Edward.
Ele levantou os olhos.
— Não está mais em minhas mãos. Sou apenas um mortal. Em cada um habita luz e sombras, cada um tem a sua escolha. Eu escolhi dikaiosini, a justiça.
— É apenas um sinônimo para ekdikisis, vingança. Você nunca soube discernir uma da outra. Seu sangue é tão grego quanto o de seu pai.
— Ele costumava dizer que pelas minhas veias corria o ichor.
— O sangue dos deuses.
Foi como se Edward adquirisse vida subitamente.
— Sinto muito, mas não cumprirei seu último desejo. Se realmente me ama como a um filho, pode entender o laço que existe entre um pai e seu filho. Sinta-se livre para me destituir do testamento.
— Você é meu único herdeiro. Embora não seja sangue do meu sangue, eu sempre confiei em você. Nunca me decepcionou, e sempre me orgulhou. Você é um Lambrou, e como tal tudo que me pertence é seu.
— Sua família cuspirá em seu enterro.
— Esse é o privilégio de sustentá-los. Não devo a mínima satisfação. Mas, seja gentil e mande um cheque generoso para minhas sobrinhas.
Spyros era um sujeito decente.
Edward sentou-se abaixo da sua árvore, a havia plantado quando tinha oito anos. Ele contemplava o sol ardente mergulhar no Egeu azul, numa explosão de cores. Não há sentido em lamentar o passado. Há um futuro para pensar, um tempo onde Charlie Swan não viveria. Ele queria ter o prazer requintado de pisar na sepultura do assassino.
Levantou-se, sacudindo a grama das roupas, foi caminhar nas areias acetinadas da praia.
Uma hora depois, quando Edward voltou à mansão, pôde sentir no mesmo instante a mudança que acorrera nela. Era como se uma cortina estivesse sido abaixada.
A morte chegou — fria e insensível, a coletora dos impostos da vida, o pagamento devido pelo ato de respirar. Ao observar August ­— o fiel mordomo de Spyros — com os olhos inchados e marcados de olheiras. Edward pensou na pluma — na sua pena de anjo. Quem sabe, pensou, havia anjos que entregavam e anjos que levavam, e de repente o passado estava aí. Spyros viveu tentando mostrar a Edward que algo aconteceria — algo lindo — e ele começaria a achar que havia esperança de que o mundo pudesse ser posto em ordem. De que haveria justiça em algum lugar.
Não aconteceria. Não a aquela altura. Talvez, de alguma forma, o que Edward iria fazer restituísse o equilíbrio. Talvez agora os fantasmas que o assombraram esses anos todos conheceriam a fúria de um coração tomado pela vingança.
“— Me perdoe Spyros, meu pai. Seu último desejo não será cumprido, no entanto os deuses me repreenderão por brincar de Zeus.”
E as vozes de seus pais se calaram — finalmente, pacificamente, irrevogavelmente.



N/A:

Bem vindos!!! 

 Estou super feliz com a estréia de ODF!!!!! Olha já aviso antes que o Edward não será um bom mocinho, na verdade a príncipio ele será o vilão, mas vamos ver até quando... MUAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAÁ

Obs: Esse prólogo contém muitas pistas, portanto fiquem atentos deste já. 

Agradecimento especial a Sutta pelo design exclusivo e todo especial. Obrigada amiga, eu te amo!








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